Sejam as leis claras, uniformes e
precisas, porque interpretá-las, quase
sempre, é o mesmo que as corromper.
Voltaire
Introdução
O ser humano sempre teve a necessidade de comunicar-se com o fim de ser entendido. A comunicação, que na pré-história surgiu por meio de símbolos litográficos, teve seu ápice com a criação da escrita, por volta de 4.000 a. C., quando os sumérios desenvolveram a escrita cuneiforme, e, a partir daí, evoluiu-se, tornando-se imprescindível às relações societárias.
O homem também careceu da necessidade de regras que definissem seu comportamento diante de seus iguais e perante o ambiente que se encontrasse. Prova disso foi a criação do Direito já nos primórdios da sociedade. Considerada a lei mais antiga conhecida atualmente, o Código de Ur-Nammu, escrito entre 2.111 a 2.094 a. C., atribuído à terceira dinastia de Ur, deixa rastros do fatídico controle jurisdicional imposto ao ser humano.
Ora, se Direito e Comunicação/Linguagem são fundamentais à vida em sociedade e estão presentes nas relações interpessoais desde a antiguidade, o que aconteceria se uma dessas ciências fosse prejudicada e não mais fosse utilizada com todo o seu potencial? Tornar-se-ia uma sociedade legalista que não se questiona ou uma sociedade questionadora e caótica?
É inegável e constitucional que a legislação brasileira foi escrita para todos os cidadãos do país, independentemente de classe social, nível de escolaridade, sexo, cor, raça e crença, além disso, como a própria Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro preceitua em seu artigo 3º: “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”.
Porém, a linguagem adotada pelo Direito tem se tornado obstáculo ao conhecimento da lei por, no mínimo, dois motivos: sua erudição e o nível precário da educação brasileira.
A Linguagem Jurídica
Sem interpretação não há compreensão, e no que tange à linguagem jurídica, interpretação e compreensão são fundamentais para que se garanta o acesso à justiça, cujo objeto vai além da leitura pura e simples de uma lei, abrangendo a interpretação não literal, uma vez que se aplica a um fato único, objetivo e concreto, uma regra geral.
Assim afirma Carlos Maximiliano:
As leis positivas são formuladas em termos gerais, fixam regras, consolidam princípios, estabelecem normas, em linguagem clara e precisa, porém ampla, sem descer a minúcias. É tarefa primordial do executor a pesquisa da relação entre o texto abstrato e o caso concreto, entre a norma jurídica e o fato social, isto é, aplicar o Direito […]. Em resumo, o executor extrai da norma tudo o que na mesma se contém: é o que se chama interpretar, isto é, determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito.
Ou seja, é o contexto que define a aplicação do texto, não podendo ser pretexto a subjetividade do julgador, mas apenas a singularidade adaptando-se à generalidade.
Neste sentido, preceitua Hans Kelsen:
Para individualizar a norma geral por ele aplicada, o tribunal tem de verificar se, no caso que se lhe apresenta, existem in concreto os pressupostos de uma consequência do ilícito determinados in abstracto por uma norma geral. Esta determinação do fato que condiciona as consequências do ilícito implica a determinação da norma geral a aplicar, isto é, a averiguação de que está em vigor uma norma geral que liga uma sanção ao fato (ou situação de fato em apreço). O tribunal não só tem de responder à quaestio facti como também à quaestio juris. Depois de realizar estas duas averiguações, o que o tribunal tem a fazer é ordenar in concreto a sanção estatuída in abstracto na norma jurídica geral.
Portanto, a linguagem não é mero instrumento do Direito, mas a própria essência dele, uma vez que não se pode falar em Direito sem se aplicar os conceitos inerentes a ela: comunicação e interpretação.
Antônio Castanheira Neves bem resume a relação entre Direito e linguagem:
O Direito é linguagem e terá de ser considerado em tudo e por tudo como uma linguagem. O que quer que seja e como quer seja, o que quer que ele se proponha e como quer que nos toque, o Direito o é numa linguagem e como linguagem, propõe-se sê-lo numa linguagem e atinge-nos através dessa linguagem, que é.
Não é por acaso que as ciências jurídicas são classificadas como ciências humanas, cuja estudo baseia-se no ser humano e nas suas relações sociais. Ora, diante disso, a linguagem torna-se fundamental e inseparável ao estudo do Direito, uma vez que a comunicação é intrínseca ao homem e às suas relações interpessoais.
Em estudo mais aprofundado sobre a interpretação jurídica e suas diversas relações com áreas do conhecimento distintas, muito bem preceitua Tércio Sampaio Ferraz Júnior:
A interpretação jurídica pode ser especificadora, restritiva e extensiva. A elas se chega através dos métodos hermenêuticos da interpretação gramatical, lógica e sistemática; da histórica, sociológica e evolutiva; e teleológica e axiológica. Estes consagrados métodos da dogmática hermenêutica constituem um repertório de regras técnicas para encaminhar os problemas de ordem sintática, semântica e pragmática da interpretação das normas. A prevalência de um enfoque e o alcance maior ou menor da interpretação representam uma escolha que visa encaminhar a decisão, “domesticando” as normas.
Entende-se, portanto, que a norma jurídica não é em si auto-interpretativa, mas a sua interpretação depende do viés adotado pelo leitor e do método utilizado para este fim.
Como bem lembra Hans Kelsen: “A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação […]”. É impossível, portanto, entender Direito sem domínio da linguagem.
O Panorama Educacional Brasileiro
O cônjuge supérstite, sensibilizado pela comoriência de seu companheiro e descendente devido a homicídio praticado com dolo eventual, esqueceu-se de depositar a cártula chéquica para pagar as custas da exordial acusatória movida contra a ré, a qual já se encontrava no ergástulo público por ter sido pega em flagrante delito impróprio. O de cujus em linha reta tinha apenas 17 anos.
O parágrafo acima pode até ser interpretado facilmente por qualquer profissional do direito, afinal desde os primeiros anos de faculdade espera-se que o estudante mergulhe no vasto vocabulário jurídico. Porém, para leigos não familiarizados com a linguagem técnica imposta pelo direito, a informação acima provavelmente não será decifrada desde logo, causando muitas confusões interpretativas.
O problema de interpretação não pode ser respondido apenas com estudo já feito sobre linguagem e hermenêutica jurídicas, pois a compreensão não se dá apenas na esfera científica, ela também é palpável.
A Constituição Federal foi resultado da vontade da população representada durante o período constituinte, sendo revisada em 1993, conforme determinação do Congresso Nacional de 1988. As leis ordinárias foram criadas com o intuito de regulamentar direitos, deveres e condutas dos cidadãos, prezando sempre pela moral e pela boa conduta, visando à convivência harmoniosa entre eles.
Se a lei é criada em prol do cidadão brasileiro, a fim de que o poder seja dele emanado e seus direitos e garantias fundamentais sejam resguardados, e se não há autoridade acima da lei, uma vez que o Brasil constitui-se um Estado Democrático de Direito, por que, então, a linguagem jurídica acaba por tornar-se obstáculo entre o legislador e o cidadão comum?
A resposta para essa pergunta poderá ser melhor entendida a partir de uma análise mais detalhada sobre a situação da educação brasileira.
A boa formação e, consequentemente, a boa linguagem e compreensão são fundamentais para um cidadão sentir-se parte de seu meio.
De acordo com Norma Lúcia Vídero Vieira Santos:
Compreendo cidadania como concernente ao ingresso na comunidade ético-discursiva (capacidade de participar nos negócios públicos), a competência argumentativa torna-se um elemento imprescindível para a intervenção na negociação pública das pretensões, posto que, para entrar numa relação dialógica, necessário se faz conhecer o modo como a linguagem é urdida. […] Assim, sem posse da informação e o domínio dos códigos e instrumentos em que a interação se processa, permitindo o acesso aos fóruns institucionais de intermediação, não há como exercitar a cidadania em sua plenitude.
Porém, o Brasil está muito aquém do ideal. Além do desinteresse dos próprios estudantes, observa-se o número crescente de professores despreparados, os baixíssimos salários pagos àqueles que se dedicam ao magistério, a falta de estrutura e de material nas escolas, o sistema educacional desgastado e desestimulante, o alto custo despendido para pagar escolas particulares, entre outros.
A educação brasileira encontra-se sedenta por mudanças. Em documento publicado pela Unesco, o Brasil ocupa a 88ª posição no ranking mundial da educação, perdendo para países como Tonga, Lituânia e Mongólia.
De um lado, o espírito de dominação do mais fraco por meio da ignorância ainda paira sobre os governantes brasileiros, de outro, problemas sociais e educacionais acabam por consumir as forças de mestres e alunos.
Pensando juridicamente, um povo sem ou com pouca instrução é um povo que não conhece e não interpreta seus direitos, sendo incapaz de lutar por eles. A linguagem de altíssimo nível que compõe os inúmeros códigos aliada à educação insuficiente são armas poderosas para afastar a maioria da população da justiça.
Diz Maurizio Gnerre:
A começar do nível mais elementar de relações com o poder, a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder. Para redigir um documento jurídico é realmente necessário não somente conhecer a língua e saber redigir frases inteligíveis, mas conhecer também toda uma fraseologia complexa e arcaizante que é de praxe. Se não é necessário redigir, é necessário pelo menos entender tal fraseologia por trás do complexo sistema de clichês e frases feitas.
Analfabetismo Funcional e a Compreensão da Lei
O analfabetismo funcional é um dos maiores desafios para a democratização do conhecimento jurídico. Segundo INAF (Indicador de Analfabetismo Funcional), uma pessoa funcionalmente analfabeta é aquela que, apesar de saber ler e escrever, não consegue interpretar e associar informações.
Uma pesquisa realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) entre 2009 e 2011, revelou que no Brasil há 30,5 milhões de analfabetos funcionais, ou seja, as pessoas constantes no primeiro parágrafo da citação acima, sem contar os verdadeiramente analfabetos, representam 21% da população brasileira. E mais: 38% dos analfabetos funcionais cursam ensino superior.
Ressalte-se que é injustificada a simplificação do Direito porque a educação brasileira não tem cumprido seu papel, deixando diversos cidadãos à mercê do letramento. A discussão em pauta não tem por objetivo nivelar uma ciência ao caos socioeducacional, mas fazer o Direito estar presente no dia a dia de qualquer brasileiro, torná-lo parte integrante da reflexão do povo e, indiscriminadamente, oferecer justiça a quem dela precise.
De acordo com Tércio Sampaio Ferraz Júnior:
O direito, assim, de um lado, protege-nos do poder arbitrário, exercido à margem de toda regulamentação, salva da maioria caótica e do tirano ditatorial dá a todos oportunidades iguais e, ao mesmo tempo, ampara os desfavorecidos. Por outro lado, é também um instrumento manipulável que frustra as aspirações dos menos privilegiados e permite o uso de técnicas de controle e dominação que, por sua complexidade, é acessível apenas a uns poucos especialistas.
Se tal tarefa já seria bastante desafiadora em um país alfabetizado, o que dizer sobre esta em um país como o Brasil, após apresentação dos estudos feitos? Mãos à obra!
Conclusão
Diante de tudo o que foi exposto, observa-se que uma possível mudança no linguajar jurídico ainda está distante, não só por questões linguísticas e de costume, mas também pela ostensividade e poder que o “juridiquês” transmite, não só pela vaidade de operadores do Direito, mas por questões políticas e econômicas que envolvem o tema apresentado.
Afinal, por que disseminar conhecimento e perder o domínio para um povo conhecedor de seus direitos e deveres?
Além disso, o ensino brasileiro não parece demonstrar expectativas otimistas para o futuro.
O desafio, portanto, deve ser feito àqueles que estão entrando na faculdade ou no mercado de trabalho, pois ainda não adquiriram vícios comprometedores de linguagem jurídica. Também deve ser feito aos professores, a fim de que leiam a Constituição em sala de aula, aproximando o aluno de uma linguagem mais rebuscada e própria do Direito, além de ensiná-lo seus direitos e deveres como cidadão que é, pois essas crianças poderão ser profissionais capazes de reverter décadas de ignorância.
Também é de suma importância programas de incentivo ao estudo para aqueles que foram prejudicados em seus primeiros anos escolares, devido a uma educação defasada e maçante.
Pode-se acrescentar, porém, que a ignorância, além de ser gratuita, torna-se interessante para aqueles que manipulam massas.
O presente artigo, portanto, constatou que o pedantismo da linguagem jurídica pode demonstrar, muito além de um simples rebuscamento, a busca pelo poder, pelo domínio, uma vez que enquanto inacessível à população a justiça, esta de forma alguma será buscada. Além disso, pode-se demonstrar que o ensino brasileiro tem deixado, e muito, a desejar, formando uma população ignorante, incapaz de compreender textos e contextos à sua volta, sendo facilmente manipulada, colocando-se à mercê do que outros dizem o que é certo, sem questionamentos.
Espera-se que as ações que visam à simplificação da linguagem jurídica obtenham sucesso, a fim de que a população leiga compreenda as leis. Espera-se também que o nível educacional brasileiro seja adequado para que o cidadão leia e interprete adequadamente qualquer texto destinado a ele.
Finda-se aqui este estudo, mas prossegue-se com o anseio pelo dia em que nem a linguagem e nem o Direito sejam empecilhos aos cidadãos brasileiros de obterem acesso à justiça, lutar pelos direitos e praticar seus deveres.